AGANTRO
Redescobrindo aldeias, repensando antropologia: continuam as caminhadas

Um olhar atento e diligente às idiossincrasias das aldeias desde uma perspectiva antropológica
Pitoes 2
Pitões das Júnias é uma freguesia portuguesa do município de Montalegre. Pablo Santiago

Agantro (Asociación Galega de Antropoloxía Social e Cultural)

3 ene 2022 10:58

Redescobrindo aldeias foi uma frase que me veio a cabeça conversando com a minha companheira, também antropóloga, estas semanas que passei na aldeia de Pitões das Júnias (Montalegre, Trás-os-Montes) devido a estarmos organizando um evento internacional intitulado Patrimônio Agrícola Mundial, Conhecimento dos Agricultores e Práticas Agrícolas Atuais.

Ao chegar na aldeia que já habitei mais de meia dúzia de meses por conta do meu trabalho de campo para o doutorado em Antropologia, me deparei, com uma nova aldeia. Aldeia que intuía, já tinha visitado, mas nunca tinha prestado demasiada atenção, nem me debruçado nela de uma forma mais demorada. Uma espécie de aldeia industrial à volta dos porcos e dos subprodutos que deles obtêm os moradores da aldeia, uma aldeia de venda direta, de inúmeros fumeiros, cheia de rituais e nuances particulares, uma aldeia hiperconectada com o mundo. Essa experiência me pôs no caminho de repensar o que em parte já sabia da aldeia, me levou a olhar com mais atenção para as casas, prestar atenção na distribuição das casas de fumeiro, nas habitações e na arquitetura própria. Penso que este é um exercício que nós antropólogas temos como base da nossa metodologia de pesquisa, seguindo as suposições de Oscar Calavia Sáez em: “Esse obscuro objeto da pesquisa: Um manual de método, técnicas e teses em Antropologia”. Para este autor, a metodologia na antropologia, consiste em, através do campo de investigação com os nossos interlocutores, irmos reformulando os nossos objetos de pesquisa, que por sua vez repensamos a teoria antropológica, mas também complexificamos o nosso conhecimento como um processo de amadurecimento. É portanto, aproximável à formulação de Leach e seu clássico Repensar a antropologia como um continuum.

O mês de dezembro na aldeia de Pitões tem um ar particular, as vacas encaram os últimos dias que estarão fora das vacarias pela chegada do frio e geadas, as pessoas começam a usar as suas capas de lã socada e teadas tão características para evitar o frio e a chuva, as chaminés das casas começam a fumaçar mais de seguido e em maior número, e então, se dá o início do tempo de sacrifício dos suínos que foram criados ao longo do ano, já seja para consumo da casa ou para o mercado de fumeiro local, altamente valorizado. Aparentemente, para quem olha de fora, desde as ruas, as casas são as mesmas.

A metodologia na antropologia, consiste em, através do campo de investigação com os nossos interlocutores, irmos reformulando os nossos objetos de pesquisa

Desde um ponto de vista do setor da restauração, comércio e hospedagem a leitura é outra, ainda que alguns dos signos elencados acima estabeleçam pontes entre os diferentes setores econômicos, afinal, muitas pessoas daí, estão imersas em mais de um desses setores. A aldeia via a associação de desenvolvimento organiza eventos como o Pitões a mão, que atrai centenas de pessoas que transformam a visão da aldeia por completo.

Vale como ressalva dizer que ao longo do mês de dezembro também é provável que caia alguma neve. E, com a neve, a chegada de visitantes a estas aldeias aumenta de forma escalar, portanto, as estantes dos restaurantes, das lojas de chãs e mel e da padaria da aldeia, se encontram sempre cheias de produtos que estão à venda para satisfação do visitante e, também dos produtores locais.

O inverno apesar de ter menos horas de luz e não concentrar muitas das atividades agrárias como o verão, é um tempo que carrega momentos (in)tensos. Neste caso a queda de neve é sinônimo de chegada de muitas pessoas que enchem os restaurantes, visitam a aldeia e compram produtos aos comerciantes locais, como pudemos perceber no dia 8 de dezembro. A neve também é tempo de confusão, havia dezenas de carros estacionados às portas dos restaurantes da aldeia, jeep transitando pelas pistas de neve da serra que depois chegam à aldeia e bastantes pessoas caminhando para visitação.

Fora desse tempo e dos finais de semana, o ritmo volta a ser pausado, particular e peculiar, em que os afazeres agrícolas se concentram nas poucas horas de sol do dia e, as pessoas se recolhem cedo, os cafés fecham à tarde e à noite cai rapidamente, igual que a temperatura. Quando estávamos chegando à nossa casa alugada, quase à noite, à nossa frente estava uma carrinha pick-up em que conseguíamos observar de forma clara as patas de ao menos 4 suínos já mortos no matadouro da cidade. Essa carrinha parou, dela desceu o dono e ao ver que estávamos ali parados, avançou mais uns metros e nos cedeu o passo.

No dia seguinte, ao passar na frente da casa, senti as pessoas conversar dentro e, bati na porta, me deram entrada e estive com eles conversando e observando o que estavam fazendo no dia 1 de dezembro, feriado nacional devido à restauração da independência. Do lado de fora, o que podemos observar é uma casa de pedra, de dois andares, com janelas de alumínio brancas. Porta de acesso no andar inferior composta por 3 folhas e uma porta de acesso ao andar superior do lado direito pra quem olha de frente a casa. Já do lado de dentro, a visão é de uma sala de desmanche semiprofissional de suínos. O primeiro que me chamou a atenção ao entrar na porta é que não consegui abrir de tudo a porta. Ancorado no teto há uma rede de vigas de ferro que são movimentadas por um monta-cargas elétrico por onde circulam os suínos já sacrificados. Nesses trilhos de ferro ainda estavam pendurados dois dos quatro porcos que tinha visto no dia anterior. Com ajuda do monta carga eles movem os animais até a sala central em que procedem o desmanche dos suínos. Vale a pena mencionar que entre a porta de entrada e o que eu estou aqui chamando de sala de desmanche há dois degraus que ajudam a que os porcos possam ser mais facilmente dirigidos. Mas, também responde a estrutura arquitetônica de um estábulo usado nos tempos pretéritos. Essa diferença de altura era a que se preenchia com rosso para estrar as cortes do gado e da que obtinham o bem mais prezado, o estrume para garantir a fertilidade das terras. No interior da sala de desmanche os moveis são conforme as medidas sanitárias, todos de aço inox. Havia do lado esquerdo 3 mulheres picando a carne, a mãe, uma vizinha da aldeia, ambas já acima dos 60 anos de idade e uma mais moça nova que tinha vindo das terras de Bouro, porque gosta da tradição e dos trabalhos em grupo, afirmava. Nessa época do ano, as pessoas da aldeia não se deixam ver muito, andam ocupadas – como todo o ano – mas estão mais nos interiores das casas. À volta de uma mesa de inox de aproximadamente um metro de largura por 3,5 de cumprimento estavam situadas duas mulheres de um lado e uma do outro, picando a carne. Ao tempo que conversavam a dona da casa e sua vizinha de aldeia intermediavam as histórias com algumas cantigas.

Havia na sala mais dois homens, o filho da casa era o responsável de ir desmanchando as peças do animal que estava pendurado e separando-as em função do que será seu uso: cabeças, costela, lombo, gordura, presuntos, pá, pezunhos e carne para os enchidos. Faz esse trabalho por animal: primeiro retira a cabeça com ajuda de uma serra sabre elétrica e depois vai retirando com ajuda de uma faca grande as demais peças do porco. Ele costuma usar uma mesa quadrada de aproximadamente 60cmx60cm separada da mesa principal de inox. Nessa mesa, se for preciso, pode usar o machado para separar algumas peças.

O outro homem, chamado de tio por eles, colhia as peças maiores e as ia cortando em finas tiras de carne que eram amontoadas em cima da mesa. Esses dois homens formavam o primeiro eslavão da cadeia de produção e estavam separados das mulheres por uma pilha de carne que era cortada a mão pelas mulheres. O trabalho delas era cortar a carne em pequenos dados que depois serão usados para os enchidos: chouriças de carne, chouriços, chouriças de abóbora, farinheiras, sangueiras, etc.

Dizem que na atualidade, o tempo dos porcos é um tempo que reúne as pessoas

Quando eu fui até a casa, já tinham desmanchado dois porcos inteiros. Desses dois porcos, a carne estava depositada numas bacias de plástico grandes nas que perfeitamente uma criança de 5 anos poderia tomar banho. Desse dia foram obtidas mais de 4 dessas bacias para realizarem os enchidos.

Uma vez desmanchados esses porcos, os dois homens começam diferentes trabalhos do outro lado da sala principal. Também há uma mesa de aproximadamente um metro de largura por uns 2 metros de cumprimento onde se for necessário duplicar a quantidade de pessoas picando carne ou desmanchando haveria essa possibilidade. Ao fundo do lado direito da sala, há uma pia com água quente para lavar as mãos. Ao fundo, como quem entra para a sala principal, há uma bancada encostada à parede que têm umas gavetas nas que guardam alguns itens de plástico que podem ser necessários para a labor de desmanche. Em cima da bancada também se encontra uma máquina de moer carne que eles usam de forma exclusiva para a gordura. As bacias com a gordura já estavam naquela parte da sala, com o que o homem de mais idade, após terminar de fornecer as tiras de carne para as chouriças, se deslocou para essa outra função. Estando na casa apareceu também, por volta do meio-dia, o pai que estava com as vacas. Ele não participa desses trabalhos, pois ainda é quem cuida das vacas. Fez algumas perguntas à sua esposa e foi até a casa para uma bucha - comer pra aguentar até a noite -, como dizem eles e voltou às vacas.

Enquanto o tio ia moendo a gordura, o filho da casa colhia as peças que iam ser salgadas. Entrando, à porta da casa à mão direita, há um quarto com um espaço feito de alvenaria, recoberto de lajota e que também tem todas as medidas de higiene solicitadas pelas autoridades. Nesse espaço vão colocando os presuntos por baixo, as costelas, cabeças mais por cima para passarem o tempo de sal que lhe corresponde a cada uma. No interior da sala, uma vez terminada a função de moer a carne e a gordura, as carnes passam ao segundo andar da casa, diretamente por dentro por umas escadas interiores. No segundo andar têm uma sala grande com uma mesa e vários bancos. Contra uma das paredes laterais da casa, olhando a casa desde a rua, do lado esquerdo se encontra a lareira. Nessa lareira é onde se faz o fogo para fumarem as chouriças, para se aquecer a sala, e é com ele também que se cozinha a carne nos potes de ferro que depois será usada para fazer outros enchidos como as alheiras. No teto desse segundo andar estão os paus que serão preenchidos dos enchidos para afumar. No segundo andar é o lugar onde a mulher da casa passará os dias seguintes, possivelmente sozinha, preparando as carnes, elaborando a combinação de temperos para cada uma das iguarias que ali se preparam, respondendo às fórmulas do conhecimento tradicional. Nos contavam os demais amigos, nesses dias, as diferenças que há entre as chouriças que eles fazem, e nós, os galegos, por exemplo. Eles consideram que colocamos em excesso o pimentão. Há casas que deitam vinho à carne, há outras que não, de forma geral, valorizam de suas chouriças o cheiro da fumaça, que a cor não seja demasiada escura e que os nacos (pedaços) de carne sejam facilmente observáveis. São esses aspectos relevantes e sistematicamente observados e analisados, quando, por exemplo, olham para as chouriças que não foram eles que fizeram. No que era a cozinha da casa passarão os produtos obtidos da segunda transformação em função de sua particularidade, uma série de dias pendurados e num ambiente afumado (defumado), obtido da madeira de carvalho.

Eis que quanto mais conheço a aldeia e as pessoas, quanto mais tempo passo nela, mais observo o conhecimento tradicional sendo atualizado constantemente, adaptado às novas condições

Depois de acompanhar esse evento particular, comecei a olhar novamente para a aldeia e dessa forma, observar aproximadamente uma dúzia de casas de fumeiro, à que lhe correspondem uma dúzia de casas de desmanche em que os suínos são transformados nas iguarias altamente valorizadas, tanto no gosto quanto economicamente, pois têm valores de venda que estão à volta dos 20 euros o quilo de chouriça.

Do lado de fora, como quem caminha pela aldeia podemos observar uma casa que mantém a estrutura das casas labregas, mas no interior, encontramos com uma casa perfeitamente adaptada às medidas sanitárias e transformando centenas de porcos na totalidade da aldeia. No ano passado, com a pandemia, a associação de produtores de fumeiro de Montalegre teve possibilidade de escoar a sua produção pelos correios, toneladas de chouriças, salpicão, alheiras, presunto foram movimentados pelo país afora. Na sua origem, o fumeiro da aldeia de Pitões, é uma clara mostra da potencialidade que tem um processo de (re)conhecimento do tradicional e da valorização que a ele se dá.

Ainda que na atualidade somente possam sacrificar quatro porcos por casa e os demais no matadouro municipal, todas as atividades que envolvem a transformação dos porcos, já seja para uso doméstico ou para venda, continuam congregando pessoas, seja as pessoas vinculadas à casa, a família (tio) ou os amigos, como no caso descrito, de uma amiga caminhante do Gerês. Dizem que na atualidade, o tempo dos porcos é um tempo que reúne as pessoas, o tal do comunitarismo, me afirmava um amigo de Pitões, atividades que têm em sua essência uma partilha da vida, como afirma o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão.

Eis que quanto mais conheço a aldeia e as pessoas, quanto mais tempo passo nela, mais observo o conhecimento tradicional sendo atualizado constantemente, adaptado às novas condições, e elevado a cerne de muitas atividades que, ainda, continuam sendo realizadas na aldeia ou, melhor dizendo, nas aldeias. Quanto mais tempo passo nas aldeias mais continuo repensando o trabalho de campo já realizado e, portanto, repensando antropologia, como nos instiga Ingold.

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