AGANTRO
Antropologia, vida e terra: apontamentos acerca de uma agenda de pesquisa.

Acredito que antropologia: vida e terra, possa ser uma forma de enunciação de pautas que se estão impondo às pesquisas antropológicas em diferentes contextos contemporâneos, já seja na América Latina ou na Europa.
Mata Atlántica Brasil
Amazonía, Brasil. Midia Ninja

Agantro (Asociación Galega de Antropoloxía Social e Cultural)

11 nov 2023 06:00

Tratarei com estas breves notas não definitivas nem sistemáticas de levantar à luz desses conceitos as reivindicações coletivas face a grandes empreendimentos de extração mineral, que têm em suas propostas uma clara afronta à forma em que esses coletivos entendem a vida e a terra. Penso que uma antropologia implicada, conforme defende Paula Godinho pode servir de modelo de inspiração. Escolhi dois contextos que a meu ver possui alguma proximidade com esses espaços de luta coletiva e pensamos que têm ressonâncias, conforme Carneiro da Cunha.

No projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande, situado no município de Santarém, Pará, Brasil, existe um coletivo chamado Guardiões do Bem Viver, formado por jovens que se juntaram no ano 2019 para promover a Romaria do Bem Viver, e que contou com mais de 1500 pessoas, na comunidade Cuipiranga, marco da resistência cabanagem. A cabanagem, conforme o Antropólogo Florêncio Vaz foi “a grande guerra em que os indígenas, os negros escravizados, mestiços e brancos das classes baixas e medias se insurgiram contra os portugueses e os luso-brasileiros” a finais do século XIX.

Nesse marco histórico e simbólico da luta contra a opressão, os jovens do Lago Grande decidiram se organizar e trabalhar conjuntamente com a Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (Feagle) na proteção e visibilização do conflito socioambiental que vêm enfrentando desde que a mineradora Alcoa se instalou no município vizinho de Juruti em 2006. Desde 2009, a Alcoa começou a fazer sondagens e perfurações nas terras do PAE, ao mesmo tempo que enviava emissários às comunidades que tentavam com regalias comprar o silêncio do povo do Lago Grande. Nos foi contado que os emissários da companhia chegavam prometendo empregos na mina, construíam e doavam o equipamento para cavar poços de água nas comunidades, assim como material de construção para as igrejas ou para as escolas. No entanto, se encontraram com um movimento organizado que negava a ação da empresa na sua terra. Depois de inúmeras denúncias de invasão de suas terras para prospecção, sem serem devidamente consultados conforme a convenção 169 da OIT, conseguiram os coletivos organizados paralisar a entrada da empresa em suas terras, através de uma liminar concedida pela justiça federal.

Frente à visão uniforme da ALCOA de entender o território do PAE Lago Grande como um repositório de recursos a serem explorados, emergem narrativas dos coletivos sociais que colocam o foco na vida, no bem viver, nas múltiplas relações que têm com a terra, seja identitária, histórica, sensível, emocional, alimentar, extrativa e produtiva.

Frente à visão uniforme da ALCOA de entender o território do PAE Lago Grande como um repositório de recursos a serem explorados, emergem narrativas dos coletivos sociais que colocam o foco na vida

Assim o expõe M. que é agricultora, mãe, guardiã do bem viver e moradora de uma Comunidade, que está recolhida em um boletim da Nova Cartografia Social da Amazônia que coordenei e que está disponível na web do projeto:

“Para nós da comunidade, para nós do PAE, a terra é muito importante, porque é dela que tiramos, é dela que nos dá o sustento, nos garante o sustento para nossos filhos. E a terra, nós devemos cultivar e não derrubar, fazer grande derrubada, porque a gente já sabe, né? que a terra é vida. Diante dessa importância que ela tem, muitos protegem seus lotes. Não querem vender e não vão vender porque eles dependem da terra pra sobreviver. Então, a terra, pra mim, ela é uma relação com o ser humano, né? Com o ser vivo, porque tudo está dependente dela. Os animais, as caças, o trabalhador rural e a nossa agricultura dependem da terra. Então, pra mim a terra, eu ter um pedaço de chão pra mim trabalhar, pra mim plantar, pra mim é... é uma felicidade imensa, eu não... não tenho palavras assim pra descrever o que é que hoje a terra representa na vida da gente (2023:10)”.

A terra é a vida, e essa sinergia, forma uma tríade com os humanos, pois quando apelam à vida, não somente falam dos humanos. Dona Ivete presidenta do Sindicato de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais de Santarém, mãe e agricultora familiar que pratica a agroecologia em sistema agroflorestal, deseja para a sua terra, que: “Cada vez mais, essa nossa Amazônia, esse nosso Lago Grande, seja ainda melhor pra gente viver, que a gente tenha terra, tenha água, tenha os produtos, tenha peixe, tenha água limpa pra gente beber, tenha tudo aquilo …esse é o futuro e o território livre de mineração (2023:27)”.

A terra é a vida, e essa sinergia, forma uma tríade com os humanos, pois quando apelam à vida, não somente falam dos humanos

Vemos, portanto, em ambas as narrativas uma relação sensível e de gratitude com a terra que lhes possibilita produzir seus alimentos, mas não só. As narrativas extrapolam apenas a relação de produção e em nome da vida, defendem os peixes, a água, as plantas, elementos que possibilitam e permitem viver, ter uma vida plena com felicidade, como afirma M.

Pulando de continente, um movimento, próximo da raia seca da Galiza com Portugal, vêm chamando a atenção dos impactos que teria a implementação de uma mina de lítio na freguesia chamada Covas do Barroso, pertencente ao município de Boticas. Esta seria a maior mina de lítio a céu aberto da Europa, conforme figura na documentação presente na página web do coletivo chamado Barroso sem Minas. Eles vêm organizando, desde o ano 2018, um acampamento anual em que a população local está amplamente mobilizada contra a mina, conta com a presença de militantes internacionais contra a mineração, académicos, artistas, etc. Desde que a companhia Savannah ameaça com a abertura de uma mina de lítio no baldio da freguesia de Covas do Barroso, o lema de mobilização e bandeira de luta, apresenta também, de forma clara, que essa mina supõe um atentado à vida: Não a Mina, sim à vida.

Seja no caso da bauxita que a Alcoa retira de Juruti ou o lítio que pretendem tirar em Covas, esses projetos vão contra a malha de sentidos, significados e sensibilidades que a terra e a vida têm para os grupos que habitam esses territórios.

No acampamento anual de Covas, os coletivos organizam as suas ações do ano, mas também aproveitam para fazer um manifesto, murais na aldeia, arrecadar fundos e renovar forças para o seguinte ano de mobilização. Como eles mesmos apresentam no chamado do ano 2023: “Serão cinco dias de partilha com as serras, as águas, os montes e com a vida que queremos proteger”. Novamente, a vida aparece como eixo de mobilização e articulação, se ampliando não apenas para a vida humana, mas incluindo as serras, as águas e os montes. Esses elementos têm uma história que se mistura com a dos moradores e agricultores de Covas, que está no Barroso, único território reconhecido em Portugal como Patrimônio Agrícola Mundial pela FAO, por ter justamente uma agricultura viva e marcada pelos conhecimentos tradicionais (não por isso estanques, mas dinâmicos, conforme Alfredo Wagner). O minifúndio, a destinação das parcelas em função da época do ano, da exposição solar, do tipo de solo, da possibilidade de irrigação ou não, definem um sistema agrícola extremamente complexo e interdependente de múltiplos fatores, que combinam as terras particulares e o baldio. Do baldio não se retira somente madeira de pinheiro, também é importante para o mato que serve de base para estrumar as terras, é o repositório de flores para as abelhas fazerem o mel, assim como o sustento de qualquer adversidade. Como afirmava um amigo da aldeia: o baldio sempre soube dar resposta às necessidades da população.

Diante da leitura monolítica que divide a natureza da cultura, vemos emergir narrativas que nos encaminham para abordar a realidade social desde uma ótica da complexidade

Diante da leitura monolítica do que Escobar chama de ontologia dualista que divide a natureza da cultura, vemos emergir narrativas que nos encaminham para abordar a realidade social desde uma ótica da complexidade, da relacionalidade, em que a forma como os grupos humanos estão em suas terras e têm com as suas terras, seus territórios, dificilmente, podem ser reduzidos a Valor. Para Escobar, seriam estas as ontologias relacionais que nos conflitos socioambientais, se opõe com outros argumentos e outras narrativas à simplificação, apelando para a terra e a vida.

Além dessas formas narrativas, pelo menos no contexto brasileiro, a vida sim que está em jogo, pois tanto M quanto Dona Ivete estão/já foram ameaçadas de morte por parte dos madeireiros, grileiros e agentes políticos locais, que também se opõem a esses movimentos sociais coletivos que desejam viver de forma plena.

Diante disto acho que terra e vida podem ou deveriam ser chaves analíticas para a antropologia como disciplina.

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